Diários

Adriano Cintra
3 min readMar 4, 2020

Publicado originalmente em 27/maio/2011

Anteontem fiz uma arrumação nervosa aqui em casa e fui abrir espaço na estante para por uns livros novos. Achei um caderninho verde que eu não via faz tempo e quando eu vi estava deitado na cama há mais de uma hora relendo meus relatos do primeiro semestre de 2004. Fiquei apavorado, revivi cada dia deprimente daquele ano.
Como esse:

“26.05.04 (escrito em 27.05.04)

Acordei as 9:45. Tomei banho e fui pro serviço escravo atrasado. Menti que furou o pneu só para não me encherem o saco. Passei o dia e a madrugada inteira trabalhando numa merda de um layout de um filme de bosta.
Eu quero arrumar outro emprego. Não aguento mais. São seis horas da manhã do dia seguinte e eu tenho que estar lá de volta às onze, às “onze em ponto hein?”. E provavelmente vou me fuder de madrugada de novo.
Faltei no ensaio do CSS. Quero sair dessa banda. Cansei da minha vida. Queria morrer. Estou morto… Puta que pariu. Caguei. Tô fora. Vão se fuder.”
Logo abaixo desse relato havia uma cruz virada desenhada com o número 666 embaixo. Esse tipo de acontecimento era frequente naquele emprego. Madrugada virada, duas horas de sono, mais madrugada virada.

“27.05.04 (escrito às 00:20 do dia 28.05.07)

Cheguei em casa às seis horas da manhã. Dormi até as nove. “Acordei”, tomei banho e fui pro estúdio ensaiando meu pedido de demissão. Sofri, tive azia. Cheguei lá e discuti com a Raquel, falei que ia descer para pedir demissão. A Luciana me acalmou.
No fim, gostaram da merda que eu fiz durante a madrugada anterior. Ufa.
Fomos almoçar no News, voltamos, trabalhei só até a meia noite. Amanhã preciso chegar as oito da manhã.”

Como eu aguentei isso por treze meses?

“28.05.04 (escrito às 5:45 do dia 29.05.04)

Acordei às 7:30. Nem tomei banho, fui pro estúdio. Cheguei atrasado, às oito e quarenta. Comecei a fazer o Honda Civic, baixei a música do Mozart e fiz um loop. Gravei um locutor para BH Shopping. O Márcio ficava me parando toda hora para fazer alguma coisa. [eu dividia a minha sala com o finalizador e tinha que interromper minha produção para que ele finalizasse outros jobs]. Às três da tarde o Emerson chegaria para gravar uma guitarra e quando eu ia sair para almoçar o Beto pediu para eu gravar um coro para ele. Eu não queria deixar de almoçar e saí, disse que não podia ajudar. Fui comer sozinho no News, comi a comida mais trash que já comi na minha vida.
Quando eu voltei as meninas azedaram muito por eu não ter ajudado o Beto. Caguei. Trabalhei até as oito da noite, saí e fui pro Outs. A Dora ficou azeda, como sempre. [Dora Longo Bahia, com quem eu tocava na banda Verafisher. Aparentemente era um dia de show.]

Eu e a Dora algures

Tocamos às duas e quarenta da manhã. Foi tosco! [isso foi um elogio]. Demos entrevista para a MTV. Machuquei os dedos. [Eu tocava bateria, devo ter martelado os dedos].

Saí de lá, dei carona para a Flávia Durante e [logo depois do “e” havia quatro linhas rabiscadas. Não consegui realmente ler o que eu havia escrito] voltei e dormi as seis da manhã.
[uma flecha indicava as linhas rabiscadas. Lia-se em letras maiúsculas: “ALGUMAS COISAS NÃO DEVEM SER ESCRITAS”]
Eu imagino o que eu fiz esse dia. Bêbado, deprimido, com raiva. [Devo ter ido ao autorama ou à sauna e depois fiquei com remorso].

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Adriano Cintra

Nasci em 21 de maio de 74. Faço música desde que comecei a tocar piano com oito anos. Já tive algumas bandas, alguns empregos, alguns namorados e alguns blogs.