Do dia que eu pedi as contas pela última vez e a CET apreendeu meu carro
[Nota do autor: vou evitar editar os textos, obviamente que vez ou outra vou sim me censurar por motivos de ter publicado coisas inaceitáveis hoje em dia. Vou apontar tais edições e responder a mim mesmo dentro de colchetes e em itálico.]
Publicado originalmente em 06/fev/2011
Não sei por que, nunca entendi o motivo, mas acontece que eu nunca fui despedido de nenhum emprego. Nem quando eu chegava para trabalhar completamente virado da noite anterior, louco de ácido e de ecstasy, fedendo a buate e dormia no sofá do estúdio enquanto meu patrão fazia o meu trabalho. Sorte? Pena? Não sei. [Privilégio.] Mas apesar de às vezes dormir no sofá e ir trabalhar sob a influência de estupefacientes, eu sempre fui muito bom no que fazia. As pessoas sabiam que podiam sempre contar comigo, apesar dos pesares eu estava sempre à disposição, nunca deixei ninguém na mão. E na maioria das vezes eu sempre tive muita sorte de trabalhar com pessoas que me dei bem e gostava. Na maioria das vezes. Porque teve uma pessoa em especial com quem trabalhei por um ano e um mês que me tornou a pessoa mais infeliz, alcoólatra e gorda que eu podia ser. Trabalhei lá exatos treze meses sem contar as férias de dois meses que eu consegui arranjar. Engordei vinte e seis quilos, quase dois quilos por mês. Eu tinha nojo de mim mesmo. Eu bebia saquê antes de ir trabalhar, levava a garrafa no carro. Pedia comida todos os dias na hora do almoço e da janta, comia na frente do computador enquanto trabalhava. Quando saía de lá ia direto pro bar. Não posso negar, foi uma época muito divertida, muitas Torres de quinta feira, às vezes de quarta e sexta também. Muito D-Edge de segunda feira, Loca de domingo. Vegas, Hells Club, o retorno. E dá-lhe trabalhar, trabalhar, voltar pra casa e ter que voltar pro estúdio, ir dormir e ter que acordar e voltar pro estúdio. “Nunca deixe seu celular no silencioso”. Eu sempre à disposição, trabalhando com um patrão sabotador que ao invés de erguer as mãos e agradecer à vida por ter uma equipe que se dava bem e dava extra conta do trabalho, resolvia dificultar a vida de todo mundo por insegurança. Eu fui levando.
Fiz um ano de casa, saí de férias. Fui fazer turnê pela Europa com o Butchers Orchestra, consegui emendar minhas férias com as férias coletivas de fim de ano, uma beleza, e fiquei fora quase dois meses tocando nos lugares mais absurdos do leste europeu com minha banda de rock malvado. E eu bebia. E fumava. E tomava qualquer coisa que me oferecessem. Vodka com maconha com ácido com mescalina e ketamina, mdma. Eu já estava passando do estágio mamute pro estágio baleia cachalote, fiquei sem tomar banho por vários dias, nevava, fazia um frio terrível e a gente dormia em sleeping bags em locais sem calefação, eu pisando na neve com o único Converse que eu tinha levado, completamente inapropriado para aquela temperatura. Eu não estava nem aí, só de não ter que ir trabalhar naquele estúdio e ter que lidar com aquele ambiente já era recompensa suficiente.
Sinceramente ia ser difícil voltar pra São Paulo e retomar aquela rotina suicida. Mas eu tentei. Naquela época eu morava numa casinha ali no Alto de Pinheiros, na Nazaré Paulista, com a Carol. Foi uma das melhores épocas da minha vida. Éramos como uma família, cozinhávamos todos os dias, fazíamos feira, tínhamos o Hugo o boxer e a Yoko a vira latas que eu herdei de um relacionamento falido de cinco anos. Eu e Carol ainda tínhamos duas bandas juntos, o Ultrasom e o Cansei de Ser Sexy. Lá eu tinha meu estúdio na edícula, onde eu viria a gravar o primeiro cd do CSS, onde gravei todas as músicas do Caxabaxa [da primeira fase, de 2005/2006] e também o BoomBoom Chicks da Debbie Cassano. A vida vibrava em todos os cantos naquela casa.
E então, depois de uma viagem de seis semanas que mais pareceu ter durado oito meses, chegou o dia de voltar ao trabalho, 3 de janeiro de 2005. Eu lembro que quando acordei eu senti uma dor física, me doía o peito. Tive falta de ar, eu chorei. Chorei de novo. Lembrei do velório da minha mãe e chorei mais ainda. Mas lá fui eu, dirigindo o Ford Ka que era da minha mãe e acabou ficando comigo depois que ela faleceu. Opa, olha quem está aqui no cantinho do lado do banco, a garrafa de saque! Dirige, dirige, bebe, bebe, era do outro lado da cidade o estúdio. Chegando lá, um alívio indescritível. INDESCRITÍVEL. Não havia ninguém! Toquei a campainha, liguei. Já era onze horas da manhã mas ninguém estava lá, a correspondência estava empilhada na caixinha, a entrada da casa estava tomada por folhas secas. Seria um sonho? Voltei para o carro e resolvi que tinham decido voltar a trabalhar só no dia 10 e que tinham esquecido de me avisar. Se precisassem de mim que me ligassem. E voltei para casa leve com duzentos quilos a menos nas costas com mais uma semana de paz e esbórnia pela frente. D-Edge [On The Rocks, a festa de rock da Vivi e do João Gordo, segunda feira], Real [um boteco em pinheiros na Cardeal Arcoverde, terça feira], Chupa Cabra [o boteco da esquina da Torre, quarta feira], Torre [de quinta], Vegas [sexta feira], Vegas [revival do Hell’s Club, sábado], Loca [matinê de domingo].
Dia 10 de janeiro de 2005, segunda feira. Toquem os sinos, chamem o carrasco. Me levem para o abate. Lá fui eu no meu Ford Ka roxo, dessa vez sem a garrafa de saque que tinha acabado lá pela quarta feira no bar do Chupa Cabra. Cheguei às dez, como de costume. Tudo a milhão, como se nunca tivessem parado nem um dia, “Adriano, precisamos mudar o final da trilha do trabalho que ficou pendente no fim do ano, sobe correndo, temos que entregar em uma hora”. E quando subo na minha sala, quem está lá, sentado na minha cadeira (ok, era dele, era tudo dele) ouvindo a trilha que eu havia feito fazendo cara de reprovação como se eu tivesse por acidente decepado sete dedos das mãos de um dos filhos dele? Ele. A cara de desespero dele era tamanha, ele estava fora de si, as veias saltadas nas ventas. Começou a gritar comigo “Que trilha é essa cara??”. Detalhe: a trilha já havia sido aprovada, só precisava mudar o fim porque tinham mudado o filme e tinha saído de sincronia um efeito de uma bola de basquete. Eu respondi calmo e educado “Ué, é a trilha que eu fiz e já foi aprovada”.
Silêncio. Ele respirou fundo e soltou o seguinte texto, ensaiado, impecável. Até o tom da voz dele mudou. Ele falou pausadamente, sílaba por sílaba, como um locutor faria o texto “Omo faz, Omo mostra”.
“Olha Adriano. Você precisa aprender umas coisas aqui. Você precisa melhorar. E muito. Veja bem. Não é porque eu toco guitarra melhor que você. Não é porque eu canto melhor que você. Não é porque eu sou mais rico que você. Mas você tem que ter humildade para aprender comigo”.
…
Uma preguiça inenarrável tomou conta do meu ser. Eu já esperava ser humilhado por ele ainda mais depois de ter passado seis semanas em turnê com minha banda pela Europa, de ter me divertido, de estar feliz. Mas esse texto superou qualquer expectativa, a pessoa estava com muita raiva minha.
“Eu quero que você refaça tudo e eu vou te ajudar a fazer. Subo em vinte minutos.” Pavor. Refazer é fácil. Agora, refazer com a pessoa do meu lado sabotando meu trabalho era demais.
Saiu da minha sala. Provavelmente foi pegar a guitarra de um milhão de dólares dele e foi mandar alguém subir aquele amplificador de quatrocentos quilos os três lances de escada.
Eu nem tirei a mochila do ombro. Fui pra sala do atendimento e avisei que não ia mais mexer naquela trilha porque eu ia pedir demissão. E desci para a sala do “financeiro” e entreguei uma carta de demissão escrita a mão. “Venho por meio dessa pedir meu desligamento da empresa, Sem mais, obrigado. Adriano”. Era uma paz tão grande. Minhas pernas pulsavam, eu mal consegui empacotar minhas coisas. Nisso ele entrou na minha sala horrorizado com a guitarra na mão. Pela porta ouvia os gemidos de alguém arrastando algo muito pesado escada acima.
“Você vai mesmo embora cara???”
“Vou. E não é porque você toca guitarra melhor que eu, que você canta melhor que eu e nem porque você é mais rico que eu.”
Eu quase xinguei ele. De cuzão. “Eu vou embora porque você é um cuzão”. Mas fiquei quieto, eu nunca mais ia ter que falar com ele e isso me deixava numa felicidade enorme. E eu fui embora. Assim que pisei na rua, fiquei histérico, elétrico. Entrei no carro, liguei pra Carol e dei ré no carro contando o que tinha acabado de acontecer. Nisso passou uma picape da CET, me fez sinal para parar e levaram o carro.
Minha mãe havia falecido em agosto de 2003. Meu pai não podia vender o carro por conta do inventário e pagar uma garagem para deixar o carro parado pareceu mais dispendioso que deixar o carro para eu usar. Só que eu esqueci que carros tinham dívidas e nunca fiz licenciamento, nunca paguei IPVA. Assim guincharam o carrinho roxo para um lote vago lá na zona leste. E eu fiquei sem emprego, sem carro, com o filme muito queimado com meu pai que teve que ir pagar seiscentos e não sei quantos reais para tirar o carro de lá. Mas naquela noite eu dormi como não dormia há exatos treze meses. O pesadelo tinha acabado. Eu só tinha que dar um jeito de pagar o aluguel, comprar a ração dos cachorros e fazer a feira uma vez por semana. A vida ia vibrar ainda mais lá na casinha da Nazaré Paulista.