25/09/2020, sexta feira, 22:42

Adriano Cintra
7 min readSep 25, 2020

arrendamento, ilusão, soberba e sofrência

Amanhã vou ver meu apartamento novo e isso pra mim talvez seja uma das coisas mais excitantes que vão acontecer esse ano. Eu não aguento mais morar nessa casa onde moro.
Me mudei para Lisboa no começo do ano passado, fui ficar provisoriamente na casa de uma conhecida. Passados uns meses, ficou claro que eu não tenho mais idade pra morar na casa dos outros então resolvi morar sozinho e acabei arrumando essa casinha de um amigo meu que mora na Austrália e a comprou pra um dia reformar e alugá-la no airbnb, colaborando assim pra gentrificar ainda mais um pouco essa pequena cidade que tem um sério problema de identidade e pensa que é uma Londres, uma Paris, uma pequena Viena cheia de imponência e muito verde. Como os planos de reformar a casa ainda estavam longe de acontecer, ele a alugou pra mim e meu marido. Uma casinha de vila operária no Alto do Pina, ou Alto do São João, ou Penha de França, como preferir. Eu prefiro chamar de Central Nervosa do Brasil.

Duas quadras pra baixo tem o bar Brasas, que todo domingo faz um churrascão na calçada com um tio que toca sertanejo na voz e violão num equipamento de som um tanto potente. A localização geográfica estratégica da vila onde moro impede que o som chegue até aqui e eu fico agradecido. Descendo a rua, do outro lado, encontra-se o X-TUDO, praticamente um ghost kitchen que entrega sanduba estilo cantina da escola, é bem bom. Tem o melhor bolo de pote de brigadeiro com morangos e o brigadeiro enrolado deles é quase bom, mas no contexto lusitano fica ótimo pois o português não captou o conceito de brigadeiro e qualquer bolo seco de chocolate com granulado em cima pra eles é de brigadeiro. Então poder comprar um bolo de brigadeiro de verdade e brigadeiros enrolados verdadeiros, mesmo que não maravilhosos, é uma coisa muito positiva.

bolo de “brigadeiro” da padaria portuguesa. dá pra ver que não é brigadeiro.

Descendo mais um pouco a rua, mora aquela mulher trans que ficou famosa e virou meme nas redes sociais xingando os portugueses durante a pandemia pela janela da casa dela. “VOLTA PA CASA DEMONHO”,” FICA EM CASA PESTE”, gritava ela. Xingou semanas a fio os portugueses até que as coisas apertaram e ela teve que pedir ajuda, então as faixas que mandavam as pessoas ficarem em casa mudaram para pedidos de doação de alimentos. Faz uns meses que não a vejo, talvez tenha ido embora.

foto durante a pandemia quando ela ainda era um tanto agressiva com os portugueses

Ao lado da casa dela, temos a grande estrela da Barão de Sabrosa, nossa Central Nervosa do Brasil: a pizzaria BIG CHIC, ex Gordo Chic. Pizza brasileira, com borda recheada. A pizza de atum deles é de cair o cu da bunda, é gigantesca e dois pedaços você fica praticamente explodindo. Se eu comer três pedaços eu tenho paralisia da digestão durante a noite e não durmo. Infelizmente a pizza que os portugueses comem é horrível e eles ainda por cima falam píza. Eles tem uma rede aqui chamada Pizza Express que, meu amor, é uma lástima e uma pizza custa tipo vinte euros. A do Big Chic custa quatorze e dá pra dividir por três pessoas fácil.

affff vou pedir uma

Então, a vila onde moro é igualzinha à vila do Chaves e vou provar:

Daí você pode me perguntar mas porque diabos eu vim morar aqui e tal, daí eu preciso te explicar como é a dinâmica do mercado imobiliário de Lisboa e como agem os portugueses com seus antigos colonos. Primeiro, vamos falar do preço das rendas (aqui aluguel é renda e isso até hoje dá um nó na minha cabeça).

ina ina ina pau no cu da valentina

Eu tentei alugar apartamento como eu sempre fiz em São Paulo, em Nova Iorque ou em Londres, que são as cidades onde eu morei. Comecei olhando anúncios. E daí aprendi que aqui tem tipo duas realidades: a realidade do EXPAT/GoldenVisaHolders (aqueles gringos riquíssimos que decidem se expatriar e viver em um país mais precário que o seu pra pagar de ricão bonvivant, o que claramente não é meu caso porque apesar de eu não precisar trabalhar, vivo uma vida bem comedida e simples com minhas rendinhas provindas das minhas obras musicais e do aluguel do meu singelo apartamento em SP), e a realidade do local.

this is a local shop for local people there’s nothing for you here

O salário mínimo português é de 600 euros. Poucas pessoas chegam a ganhar “tudo” isso pois a maioria trabalha meio período e ganha tipo 350, 400 euros por mês. Quem ganha bem ganha 1000 e quem ganha muito bem ganha 1500. Quem é playba mesmo e trabalha em algum dos pouquíssimos empregos de marketing disponíveis no país, ganha mais de 4000. E daí você procura apartamento pra alugar e não acha nada por menos de 800 euros. Caraca, quem pode pagar 800 euros se o salário mínimo é de 600? Claro, os expats, golden visa holders e estudantes ricos. Franceses e ingleses e alemães e holandeses e a Madonna. Os muito ricos vão morar lá pra Santos, perto do rio, longe do metro num super apartamento remodelado cheio de mármore e aquecimento, pagando 2500 euros. Os outros menos ricos acabam por alugar esses apartamentos de dois quartos semi remodelados por 800, 900 euros. Eu tava querendo pagar assim, no máximo 600 euros pra dividir com meu marido (que tem passaporte português e depois eu conto como a burocracia trata o brasileiro que tem passaporte português e quer morar aqui, fica pra outro post). A única casa que eu consegui alugar por 600 euros foi essa aqui, do tamanho da sala da minha casa de SP e com um banheiro igual aos dos ônibus de turnê que já usei. O poliban (veja abaixo) é tão pequeno que você é obrigado a tomar banho imitando um esparguete (essa característica me obriga a ir à academia todo dia para tomar banho lá).

poliban, aka base de duche, em meia lua de 70cm igual à daqui de casa

Mas não foi só o preço que me impediu de alugar uma outra casa que não essa. Eu já até tinha aceitado pagar 800, quiçá 900 num apartamento com quintalzinho ou sacada. Só que, curiosamente, há uma imensa quantidade de portugueses que, por acaso, trabalham como corretores de imóvel e outra quantidade considerável que, por ironia do destino, acabam sendo os donos daqueles apartamentos de merda com rendas superfaturadas pra trouxa pagar e todos eles odeiam, detestam, têm nojo de brasileiro e não sentem o menor constrangimento de os tratar de uma forma que eu nunca fui tratado em outros países. Eu ligava no número anunciado. “Tô”, diziam do outro lado. “Boa tarde, eu ligo por conta de um anúncio…” “Já não está mais disponível” e desligava na minha cara. Isso aconteceu algumas vezes. Quando eu comecei a pedir pra um amigo português ligar e marcar, consegui visitar alguns imóveis. Ao ver o brasileirinho aqui já falavam: “Pra brasileiro sem contrato de trabalho, pedimos um ano de renda adiantado mais três cauções”. Eu não tinha contrato de trabalho, nem dois últimos impostos de renda declarados aqui. Eu tinha como comprovar uma renda mensal compatível com o aluguel que eu ia fazer mas ninguém queria saber. Ou eu pagava quinze aluguéis adiantados ou alugava um quarto numa república de estudantes.

Em NY, nos anos noventa, aluguei um apartamento. Eu tinha vinte e três anos, liguei pro anúncio de um apartamento de um quarto no lower east side, fui visitar, paguei três aluguéis de caução e fiquei com o apartamento. Olha, eu estava no país como turista e consegui alugar um apartamento. Em Londres, em 2006, já com visto de trabalho, liguei pro anunciante, demonstrei interesse, visitei, mandei os documentos, paguei o caução, chave na mão. O meu apartamento em SP estava alugado pra um casal de sapatão novinhas no mesmo esquema: me pagaram três alugueis de caução, assinaram o contrato e pronto.

Esse apartamento de amanhã é de um amigo e só por isso vamos nos mudar pra lá. Mesmo com meu marido tendo arrumado um emprego na área dele com contrato de trabalho e ganhando muito bem. Acabamos por ficar aqui na vila do Chaves. Eu não tenho mais estômago pra lidar com português escroto xenófobo dellusional. Outro dia vou contar como é o tratamento dado nas repartições públicas daqui.

Só fico pensando em todos os perrengues que os brasileiros passam nesse país e só consigo sorrir quando passo na frente do Brasas e a sofrência ao vivo e em cores tá gritando a plenos pulmões por essas sete colinas.

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Adriano Cintra

Nasci em 21 de maio de 74. Faço música desde que comecei a tocar piano com oito anos. Já tive algumas bandas, alguns empregos, alguns namorados e alguns blogs.